Conferência de Biodiversidade da ONU é considerada crucial para salvar a natureza. Apontados como fundamentais para a preservação ambiental, indígenas não são parte formal da rodada de negociação
Na fria Montreal, metrópole canadense que sedia a 15ª edição da Conferência de Biodiversidade das Nações Unidas (COP15), representantes de 196 governos tentam criar um plano para proteger a natureza nos próximos anos.
A reunião global, iniciada nesta quarta-feira (07/12), é vista como a última chance de os seres humanos fazerem um acordo para frear a perda colossal da biodiversidade no mundo. A taxa de extinção se acelera num nível preocupante e ameaça pelo menos um milhão de espécies, revelou em seu último relatório a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (Ipbes).
Conferência discute a alarmante perda da biodiversidade global / AFP
As expectativas para que se chegue a um pacto forte nos próximos dez dias de negociações, no entanto, são modestas. O encontro global sobre biodiversidade ocorre dias após a 27ª Conferência do Clima (COP27), sediada no Egito, considerada mais popular. A diferença é vista até na lista dos participantes: ao contrário das negociações sobre o clima, a COP15 não contará com a presença de chefes de Estado.
Os maiores guardiões da riqueza natural também se sentem desprestigiados. Povos indígenas, que são 5% da população mundial mas protegem cerca de 85% da biodiversidade, segundo estudo recente publicado na Proceedings of the National Academy of Sciences, não fazem parte formalmente da rodada de negociação.
“Fazem toda essa discussão sem nossa participação. Todo o debate é baseado em muito conhecimento técnico, científico, mas quem faz a gestão da biodiversidade na prática somos nós. E protegemos nosso território, às vezes pagando com a própria vida“, argumenta Dinaman Tuxá, representante da Articulação dos Povo Indígenas do Brasil (Apib), em entrevista à DW.
Ausência e descaso
As negociações em Montreal deverão girar em torno de uma meta ambiciosa: proteger 30% do planeta até 2030. Para Brian O’Donnell, diretor executivo da Campaign for Nature e um dos principais apoiadores da proposta, um eventual acordo tem que garantir respeito aos indígenas.
“Para que qualquer acordo de natureza global seja bem-sucedido, os direitos e a liderança dos povos indígenas devem ser respeitados. A liderança e respeito aos direitos deles no âmbito da iniciativa 30×30, restauração e outras metas da Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica (CDB) é fundamental. O financiamento para garantir os direitos territoriais deles e a conservação deve fluir para esses defensores da natureza na linha de frente”, argumenta O’Donnell.
Mas essa pauta não deve ser enfocada pelo atual governo brasileiro, em fim de mandato, presente na COP15. Dono da maior biodiversidade do planeta, o Brasil será representado pela administração de Jair Bolsonaro, marcada por políticas antiambientais.
“Não houve avanço na proteção da biodiversidade [sob Bolsonaro]. Pelo contrário. A degradação está avançando sobre áreas protegidas. O desmatamento não afeta só o clima, mas toda essa rede de vida”, analisa Mercedes Bustamante, pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB), em entrevista à DW.
Historicamente, por outro lado, o papel do Brasil é de liderança. “Espera-se um posicionamento forte e ação clara do país, que sempre ‘puxou’ as negociações”, analisa Frineia Rezende, diretora executiva da The Nature Conservancy (TNC) Brasil.
Julie Messias, secretária de Biodiversidade do atual Ministério do Meio Ambiente, disse que ainda há um grande trabalho de conciliação entre as partes a ser feito para se chegar a um acordo global ao fim da conferência em Montreal. “O Brasil apoiará objetivos cientificamente sólidos e baseados em evidências para promover ações viáveis que contribuam efetiva e eficientemente para interromper a perda de biodiversidade”, afirmou.
Oportunidade perdida
A Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica (CDB), que realiza a cada dois anos a conferência da biodiversidade, foi criada durante a Cúpula da Terra no Rio de Janeiro, também chamada de Eco-92. Assinada por 150 líderes naquela ocasião, a CDB tem a meta de prezar pela conservação da diversidade biológica, pelo uso sustentável dos componentes dessa diversidade e fazer a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes do uso desses recursos genéticos (espécies animais, vegetais e microbianas de valor econômico, científico, social ou ambiental).
O Brasil foi um dos primeiros a criar uma maneira de fazer essa distribuição e destinar parte dos recursos financeiros a povos indígenas e comunidades tradicionais. Isso seria feito via Fundo Nacional para a Repartição de Benefícios, mas o processo emperrou durante o governo Bolsonaro.
Com R$ 4 milhões depositados pela indústria que usa elementos da fauna e flora nativas em seus produtos, o fundo deveria ter um representante indígena em seu comitê gestor. A indicação teria que vir do governo federal, uma espera que já dura mais de quatro anos.
“Como falar da proteção da biodiversidade se o fundo que é para repartir os ganhos a partir do uso dos recursos genéticos protegidos por eles não funciona? Era a oportunidade de o Brasil chegar à COP15 com um caso de sucesso, mas foi perdida”, lamenta Bustamante.
Frineia Rezende, da TNC, concorda que esse é um ponto estratégico que deveria receber mais atenção. “Medicamentos e cosméticos que se encontram no mercado quase sempre têm algo que vem de recursos genéticos da flora ou fauna nativa. A partir do momento que se acessa esse recurso genético e se obtém um produto, aumenta o interesse de se garantir a longevidade e proteção dessas espécies”, argumenta, pontuando a abrangência do tema.
“Muitas empresas usaram da nossa biodiversidade em seus produtos, ganharam muito dinheiro, e nunca repartiram seus lucros com comunidades e outros detentores dos conhecimentos tradicionais aplicados em seus produtos”, adiciona Rezende.
Riscadas do mapa
Nas terras quentes na divisa entre Bahia e Pernambuco, o povo tuxá, de Dinaman, vê a extinção de plantas acontecendo na prática. “Várias áreas onde encontrávamos essas plantas estão sendo destruídas por monoculturas e empreendimentos. Não é só a biodiversidade que está indo embora, mas todo um conhecimento agregado ao longo de milênios”, diz ele em entrevista, de Montreal.
A perda também impacta a alimentação. O mari, por exemplo, cujo fruto era bastante consumido, não é mais encontrado no território. Removidos da região que habitavam originalmente para a construção da hidrelétrica de Itaparica, no bacia do rio São Francisco, os tuxá perderam principalmente as ilhas que usavam para plantio, inundadas devido à barragem.
O último relatório Living Planet, do WWF, mostrou que o avanço do homem sobre a natureza teve efeitos mais drásticos nos países de clima tropical. Entre 1970 e 2018, as populações de vida selvagem monitoradas na América Latina e na região do Caribe caíram 94% em média, segundo o levantamento.
Para Dinanam, parte desse cenário se deve à falta de política indígena no país. “O Brasil não se preocupa de fato com a proteção da biodiversidade, pois não demarca as terras indígenas, não fiscaliza, não tem um mecanismo de proteção de conhecimentos tradicionais”, argumenta.
No sertão de Pernambuco, a liderança jovem João Víctor Gomes de Oliveira, do povo Pankararu, observa os mesmos sintomas. “Nosso calendário espiritual e agrícola foi ensinado pelos mais velhos, o período de plantar, de colher, de cuidar da terra. Aprendemos a ouvir os sinais, e a terra está pedindo socorro”, diz.
O alerta, espera Rezende, precisa ser ouvido por quem estará nas mesas de negociação na COP15. “Precisamos sair desta conferência com um plano de ação focado na iniciativa 30×30. Sem conservação da natureza não há como combater as mudanças climáticas, não há como frear a extinção de espécies que estamos presenciando”, ressalta.
Por Nadia Pontes/DW