Ibama e MPF desmontam invasão em terra indígena financiada por fazendeiros no Pará

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Grupo estimado de 200 invasores foi desmantelado na terra indígena mais desmatada do país

Em agosto, um grupo estimado em 200 invasores da Terra Indígena Ituna-Itatá, no Pará, uma das mais desmatadas durante o governo de Jair Bolsonaro, ergueu um novo núcleo urbano clandestino numa das principais entradas do território. Para construir os barracos, os invasores derrubaram, com corte raso e fogo, 43 hectares de floresta primária rica em espécies protegidas por lei, como a castanheira. De acordo com o Ibama, essas pessoas foram atraídas por “fazendeiros locais” que “financiaram a invasão de uma área dentro da TI [terra indígena] como estratégia de ocupação do território, com a promessa de dar porções de terras à população”.

Fazendeiros desmataram 43 hectares de floresta no Pará/Divulgação

Em entrevista à Agência Pública, a coordenadora-geral de fiscalização do Ibama em Brasília, Tatiane Leite, disse que a vila clandestina foi “subsidiada pelos fazendeiros que têm gado, ilegalmente, dentro de Ituna-Itatá”. Estima-se que mais de 5 mil cabeças de gado hoje são criadas dentro da terra indígena. Até 2011, diz o Ibama, o gado praticamente inexistia e o desmatamento era ínfimo. A partir dos dados de satélite coletados pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o Ibama estima um desmatamento de 24,5 mil hectares de 2019 até meados de 2022, cerca de 17% da terra indígena, que tem 142 mil hectares.

Os barracos da nova vila foram erguidos poucos dias antes do início previsto de uma operação de retirada dos invasores pelo Ibama — a informação, contudo, provavelmente vazou para os invasores. O Ibama adiou a operação, reorganizou as forças e a desencadeou nesta semana.

“Há uma grande quantidade de fazendeiros que não moram mais dentro da terra indígena. Eles espalharam o gado por lá e agora pagam pessoas para cuidar do gado. Esses fazendeiros fizeram como que uma barreira para o Ibama não conseguir tirar o gado. Tem até linha de energia elétrica que abastece os fazendeiros. Construíram casas para as pessoas cuidarem desse gado. Faziam churrasco, davam comida, bebida às pessoas, apareciam candidatos a cargos eletivos para fazer campanha. Agora nós desmontamos as casas, destruímos os currais, os barracões, já serramos pontes, todo esse aparato é clandestino e ilegal.”

Nesta semana, o Ibama e outros órgãos, como o MPF (Ministério Público Federal), a Força Nacional e a PF (Polícia Federal), deflagraram duas operações simultâneas que se complementam: a Avarus, que investiga o papel de servidores da Funai (Fundação Nacional do Índio) em Brasília no sentido de relativizar ou desconsiderar vestígios de indígenas isolados dentro da Ituna-Itatá, o que, segundo a hipótese sob investigação no MPF, ajudaria a liberar a terra para a exploração privada, e a Vetiti Terra, a maior ação de repressão aos crimes ambientais em Ituna-Itatá nos últimos quatro anos.

Com 17 fiscais do Ibama e 40 policiais da Força Nacional, em parceria com o MPF e a PF, a Vetiti Terra destruiu 63 barracos e apreendeu 10 motocicletas e “diversas armas”, informou o órgão ambiental. Os fiscais ambientais sabiam que haveria uma resistência menor à operação porque o Ibama havia detectado que muitos dos invasores deixaram momentaneamente a área para participar dos atos antidemocráticos que pregam um golpe de Estado inconstitucional e ilegal no país. Os invasores estavam “desmobilizados e enfraquecidos”. O Ibama apurou que parte dos invasores participa de uma “vigília” em frente ao quartel de Altamira, enquanto outro pequeno grupo foi participar de manifestações em outras cidades.

O procurador da República em Altamira (PA) que atua no caso, Gilberto Naves Filho, disse que o desmatamento da Ituna-Itatá “cresceu exponencialmente por razões meramente econômicas”.

“O que nós vemos em Ituna-Itatá é uma organização que se tornou, com o tempo, mais sofisticada, mais ousada, que passou a exigir meios de investigação especiais para desarticulá-la. A atuação de um órgão isoladamente não é suficiente para resolver a situação. A única solução seria a ação articulada dos poderes públicos para combater o desmatamento e fazer a responsabilização pessoal daqueles que estão lucrando muito com a ocupação irregular de uma terra pública. O que nós vimos é que houve uma sofisticação maior a partir de 2018, quando um grupo proeminente do Estado do Tocantins começou a atuar na área”, disse o procurador.

Fazendeiros que atuam como cabeças da invasão passaram a dividir a terra em lotes, com apoio de agrimensores e uso de desinformação para confundir as pessoas sobre o histórico de ocupação da região, segundo o procurador. Criaram associações de produtores rurais que, na opinião do procurador, funcionam para dar o contorno de “um movimento social que, na verdade, não existia”. “Criou-se um caráter fictício de movimento social. Começou-se a doar lotes, a recrutar pessoas vulneráveis, elas recebiam lotes ‘doados’ com o compromisso de que deveriam resistir às forças da fiscalização ambiental. Isso colocou os agentes ambientais em elevado risco durante as fiscalizações.”

Segundo Naves Filho, no desenrolar das investigações surgiu “a possibilidade do envolvimento de um servidor relevante da Funai” e por isso a sede do órgão indigenista foi alvo de um mandado de busca e apreensão na quarta-feira (14). Até esta etapa da investigação, não houve, contra servidores da Funai, nenhuma denúncia formal de crime. A operação está na fase da coleta de evidências, que podem ou não culminar em uma denúncia pelo MPF. Outro alvo da investigação é o fazendeiro Jassonio Costa Leite, do Tocantins, que já sofreu diversas autuações do Ibama e foi objeto de uma outra operação do MPF e da PF no ano passado, a Sesmarias.

Sobre a Ituna-Itatá incide, desde 2011, uma portaria de restrição de uso, instrumento utilizado pela Funai para localizar e proteger indígenas isolados. De tempos em tempos, a portaria precisa ser renovada. Desde o começo do governo Bolsonaro, a pedido de políticos do Pará como o senador Zequinha Marinho, a Funai passou a sinalizar dificuldades na tarefa de renovar a portaria. Esses entraves foram denunciados por entidades indígenas e indigenistas, como o OPI (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Isolados), co-fundado por Bruno Pereira, indigenista da Funai assassinado em junho passado no Vale do Javari. Em 2020, o OPI procurou o MPF a fim de pedir providências para proteção do território.

A Funai chegou a realizar uma expedição na Ituna-Itatá, o que contrariou a uma recomendação do MPF expedida em novembro de 2020 ao presidente da Funai, Marcelo Xavier, e o diretor de proteção territorial, César Augusto Martinez. O MPF ponderou que “qualquer entrada na área de isolados somente pode ser realizada após a desintrusão e regularização fundiária, com retirada dos invasores que atualmente ocupam a terra indígena e representam ameaça à vida e à integridade física dos servidores públicos que adentrarem ao local”.

De acordo com o procurador, documentos e ações adotados pela Funai sobre Ituna-Itatá foram “medidas claramente contrárias aos interesses dos indígenas”. Naves Filho disse que a ocupação irregular “ameaça o direito da existência de indígenas isolados”. Daí a necessidade de averiguar o papel dos servidores da Funai. “Não entendemos como razoável essa difícil missão de ‘localizar os índios isolados’. A Funai já vinha historicamente apontado esses indícios [em outros momentos]. Com esses elementos, passamos a trabalhar com a hipótese não só de uma vontade, mas também em um ajuste com essa organização que procura alguma forma de regularizar essa ocupação criminosa que aconteceu em Ituna-Itatá”, disse o procurador.

“Nós buscamos melhor compreender por que não se consegue deter, apesar de tantos trabalhos nos últimos anos, a organização criminosa que procura se apropriar dessa terra indígena. Há diversos crimes sob investigação, como desmatamento de terra pública, estelionato majorado. Algumas pessoas relataram ao Ibama que compraram as terras acreditando que eram regulares. Até 2011, quando foi feita a primeira portaria de restrição de uso, o desmatamento era absolutamente inexpressivo. Ele começou mesmo a partir de 2016, o que leva a crer que esse processo se iniciou em plena restrição de uso, o que é confirmado pelas denúncias das organizações sociais, como o OPI”, disse o procurador.

Em nota enviada à “Folha de S. Paulo”, a Funai disse que não comentaria investigações em curso e se disse à disposição para colaborar com o trabalho da polícia. A fundação disse que “tem sua atuação pautada na legalidade, segurança jurídica e promoção da autonomia dos indígenas”

Por Rubens Valente/ A Pública

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